Comércio & Serviços

Empreendedorismo social

A transformação no fio da navalha

Barbeiro utiliza sua trajetória empreendedora para formar outros profissionais na zona sul de Teresina

 
 
O barbeiro Marden Reis usa o empreendedorismo ajudar pessoas vulneráveis (Fotos: Régis Falcão)

 O barbeiro Marden Reis usa o empreendedorismo ajudar pessoas vulneráveis (Fotos: Régis Falcão)

 
 

A navalha é um instrumento de precisão que requer cuidado e experiência. Para quem a manuseia, um fio delimita um trabalho bem feito e um acidente e, com isso, até mesmo, um corte na reputação profissional. Da mesma forma ocorre no mercado de trabalho, quando se busca empreender, ter sucesso, mas é necessário colocar às mãos na obra, neste caso na tesoura. Contudo, com conhecimento e orientação adequada, realizada por entidades como o Sebrae, boas práticas e as melhores ferramentas, o risco de um resultado negativo é menor.

O barbeiro Marden Reis, de 34 anos, compreende os dois lados desse gume e hoje carrega uma história crescente de sucesso, que mistura empreendedorismo e doação ao social, que já resultou em mais de 200 profissionais formados por ele.


Atualmente, o Piauí encara uma onda crescente de pessoas que apostam nos riscos da navalha do empreendedorismo.


Segundo dados da Junta Comercial do Piauí (Jucepi), em 2023, foram abertas 28.929 empresas, sendo 20.398 microempreendedores individuais (MEI) formalizados no Portal do Empreendedor e 8.531 empresas no portal Gov.Pi Empresas.

Das 8.531 empresas abertas no Portal Gov.Pi Empresas, 6.771 correspondem a microempresas (79%), 1.158 são empresas de pequeno porte (14%) e 602 delas não estão enquadradas no Simples Nacional (7%). Ainda de acordo com os dados da Jucepi, a atividade econômica predominante é o comércio com 3.593 empresas (42,12%), seguido dos serviços de saúde humana, com 1.184 empresas (13,88%) e atividades profissionais, científicas e técnicas, com 598 (7,01%).

 

Total de empresas abertas no Piaui por porte

 

 

Uma vida na navalha

Marden Reis soube agarrar bem as ferramentas e afiou bem a navalha para entrar no mercado. E hoje ele olha para o seu nome destacado em uma logomarca na sua barbearia no bairro Santo Antônio, na zona Sul de Teresina, e vê mais do que um espaço bonito e aconchegante que oferece um serviço diferenciado para os clientes da região. Ele enxerga uma trajetória com diversos cortes da navalha da vida, mas que serviram de aprendizado, como um item que o impulsiona para a transformação social.

Essa transformação iniciou quando ele abriu portas para o mercado de trabalho para centenas de jovens em todo o Piauí, dezenas deles na sua região. Eles foram capacitados por Marden para o ofício de barbeiro e hoje contam com uma profissão.

Marden teve uma criação difícil e começou a trabalhar muito cedo

 

Natural de São Luís (MA), Marden foi criado pelos avós e começou a trabalhar muito jovem com vendas em bares, mas sempre observando uma tia que ganhava a vida com suas habilidades na tesoura. “Ela me ensinou a cortar cabelo. Tinha cerca de 14 a 15 anos. Então, fui me desenvolvendo, trabalhando com outras coisas e aos finais de semana cortando cabelo”, lembra com um olhar nostálgico.

Depois de dois anos entre as tesouras e as vendas em bar, Marden resolveu dar um corte certeiro que mudaria sua vida: investir no seu ofício como barbeiro. “Comecei a me especializar e resolvi fazer um curso no Senac e depois vim pra cá [Teresina], onde comecei a fazer outros cursos na área”, destaca.

Com as demandas de barbeiro aumentando e o começo do reconhecimento profissional, Marden resolveu montar seu primeiro negócio com um sócio na zona leste de Teresina, entre os anos de 2015 e 2016. A ideia também pegava carona no início do boom das barbearias na capital, as primeiras que ofereciam diversos serviços e atrativos para os clientes, como cerveja e até jogos como sinuca.

“Foi aí que tive que buscar conhecimento, não só na parte de corte de cabelo, mas de atendimento ao cliente, de gestão, finanças, de aprender a reinvestir aquilo que estávamos ganhando”, explica Reis.

 

Aprendendo a cortar papel

Mesmo participando de constantes treinamentos específicos na sua área, Marden destaca que foi fundamental para a sua vida profissional a compreensão de algo além da tesoura e navalha: gestão de negócios. Segundo o barbeiro, não adianta o profissional ter apenas o domínio do seu ofício se não abrir a mente para o funcionamento do mercado e de estratégias de gestão. “O Sebrae foi fundamental nisso. É impossível falar da minha carreira sem falar dele, pois meu primeiro CNPJ foi gerado depois de palestras em que se falavam muito em crise e o Sebrae entrou muito com cursos e palestras tentando modificar a mentalidade das pessoas para empreender. E foi isso que aconteceu”, acrescenta.

Marden lembra que participou de cursos relacionados à logística e finanças no Sebrae e que, graças a isso hoje consegue ter uma visão macro do que é empreender. “Lembro de um palestrante que falou algo que me marcou. Perguntava porque a gente não pegava a palavra ‘crise’ e modificasse para a palavra ‘crie’. E foi basicamente isso que aconteceu. Eu resolvi criar num cenário de crise. E o Sebrae contribuiu ativamente para isso, pois é uma instituição que aponta as direções que devem ser seguidas pra quem decide empreender”, destaca.

 

O barbeiro disse que graças a cursos relacionados à logística e finanças no Sebra consegue ter uma visão macro do que é empreender

 

Pandemia e a reinvenção do corte

Apesar do sucesso de Marden, com uma grande cartela de clientes, a quantidade de novas barbearias na cidade com o mesmo serviço começou a afetar o equilíbrio das contas, o que o levou a abandonar a sociedade.

Foi então que se rendeu ao convite para um dos maiores salões da cidade com a segurança de uma carteira assinada. No entanto, logo chegou a pandemia de covid-19 e Marden se viu em uma situação complicada.

Com a maioria dos negócios de portas fechadas, com um grande impacto financeiro e o seu tipo de serviço sendo considerado de risco pela proximidade com as pessoas, o barbeiro decidiu atender em domicílio.

“Postei na internet que estaria disposto a atender, oferecendo meus serviços, mas buscando de fato os cuidados que eram necessários, como uso de máscaras, luvas, evitando contato com pessoas [infectadas]. E com isso conseguimos estabelecer uma nova modalidade de serviço e os clientes passaram a se sentir mais seguros. Aí o negócio alavancou [mais uma vez]”, lembra.

Hoje Marden voltou a ter seu próprio negócio, com serviço diferenciado e graças ao sucesso do atendimento domiciliar e auxílio das redes sociais, segue com as duas modalidades.

Assim como acontece com a barbeiro, os meios digitais turbinam as vendas de vários empreendedores.


Segundo a 5ª edição da pesquisa Pulso dos Pequenos Negócios, divulgada pelo Sebrae no início de 2024, para mais de 30% das micro e pequenas empresas piauienses, a comercialização de produtos ou serviços nos meios digitais representa de 25 a 50% do faturamento, e para quase 20% delas, o percentual fica acima de 50%.


Desses números, o setor que mais se destaca com presença nas redes sociais é Beleza (83%), seguido de Indústria Alimentícia (82%), Negócios ligados à Economia Criativa (79%), Petshops (75%) e Artesanato, Educação e Moda (72%).

“Não é todo mundo que tem tempo de ir numa barbearia. Às vezes a pessoa tem algum problema pra se locomover, ou correndo com compromissos e a gente vai lá e leva nosso material. A pessoa entra em contato [via redes sociais] e quando eu não estou disponível, vai alguém da minha equipe atender [em domicílio]. É muito mais cômodo para o cliente”, destaca Reis.

E até para esse tipo de serviço é necessário cuidado e conhecimento, algo que Marden também destaca as orientações do Sebrae. Entre elas, o programa Brasil Mais Produtivo, que leva inovação às micro e pequenas empresas o acompanhamento de um Agente Local de Inovação, que aplica uma metodologia ágil para solucionar problemas e otimizar processos, implementando soluções inovadoras, aumentando o faturamento, reduzindo custos e dando os primeiros passos na transformação digital do negócio.

 

Marden acredita que suas ferramentas podem abrir horizontes para muitos jovens

 

Do caos à lâmina

Apesar de ascender na carreira com a vinda para Teresina e ser sempre ativo profissionalmente, a vida de Marden também teve um momento no qual a lâmina resultou em cortes que deixaram cicatrizes.

Devido a uma adolescência complicada, sem conhecer o pai, se vendo obrigado a trabalhar muito cedo, acabou entrando em um mundo perigoso e muito sofrimento pelo uso de drogas, chegando a se internar em uma clínica para dependentes. No entanto, seu espírito desafiador o fez virar essa página. Hoje ele fala com cuidado sobre o assunto, mas com orgulho de ter vencido essa etapa tenebrosa.

Todavia, entendendo que a lâmina pode ser afiada e cortar de dois lados, a convivência com pessoas em situação de vulnerabilidade acabou sendo o embrião de uma ação que transformou sua vida, mas que só despertou depois de mais um momento delicado. “Há uns três ou quatro anos atrás me deparei com um cenário com a minha esposa, que teve um problema de saúde e não pode ter filhos. E eu que sou um cara hiperativo, dinâmico, resolvi canalizar o tempo que me dedicaria a um filho isso para ensinar. Hoje faço parte da secretaria da associação do bairro e conseguimos uma escolinha de futebol em um projeto chamado Meu Guri. Agora eu aluguei dois galpões aqui perto e se Deus quiser vou conseguir estruturar uma escola [de corte de cabelo]”, frisa Reis, com olhar esperançoso.

Marden, que também é professor de barbeiro no Senac, lembra que apesar desse projeto de ensinar gratuitamente jovens da periferia a cortar cabelo ser algo audacioso, essa é uma missão que ele já se dedicava, principalmente para aquelas pessoas em situação de vulnerabilidade.


Cerca de 200 pessoas já receberam qualificação pelas mãos de Marden em projetos sociais em diversos cantos do Piauí, o que encara como uma retribuição ao mundo, uma forma de ser um bom exemplo de superação.


Para Marden, não adianta ter um negócio de sucesso, ganhar dinheiro, sem fazer sua parte para a melhoria de vida das pessoas que o cercam. E essa é uma forma de contribuir com o seu empreendimento para a transformação de realidades locais, algo que já fazia esporadicamente. “Eu tenho um grande objetivo com isso, que é tentar levar os jovens a receberem essa qualificação, com essa profissão de barbeiro, e em seguida ofertar o meu espaço para que eles possam se tornar futuros sócios”, destaca.

Novos barbeiros em formação e futuros empreendedores

Hoje a barbearia de Marden, na zona sul de Teresina, conta com um sócio que veio do seu prazer de ensinar. O jovem Samuel Furtado, de 19 anos, foi aluno de Marden em um dos cursos no Senac e, por ter se destacado e ter uma visão empreendedora, somou aos esforços de Reis na barbearia que ele erguia na zona sul. “Eu me perguntava muito o que poderia fazer por esse bairro e comecei a ter ideias de algo para agregar aqui. Começamos a conversar e surgiu o convite para integrar o espaço. Hoje eu já tenho meus clientes fixos e já atendo muita gente”, destaca o jovem.

 

 Samuel e Marden hoje apostam juntos num projeto que pode mudar a realidade das pessoas da comunidade 

 

Entre as centenas de nomes capacitados por Marden, Sávio Felipe, de 24 anos, também é um dos que hoje vê sua realidade transformada com o ofício. Já atuante no mercado profissional, ele destaca que se inspira na trajetória do professor, assim como muitos outros.


“A história de vida do mestre me inspirou como todo. Um cara que veio pra capital, começou de baixo, com um valor do corte de R$ 4,99 e hoje é um profissional renomado, com trabalho reconhecido regionalmente. Me inspira até hoje a seguir meu desejo de abrir meu próprio negócio. E não desistir daquilo que lutamos”, acrescenta.


Sávio, que trabalha numa barbearia na Piçarra, zona Sul de Teresina, já está afiando sua navalha para novos cortes, independentes, seguindo seu sonho de montar o próprio negócio até o final do ano na sua casa, no vizinho bairro Cristo Rei. E apesar da coragem, ele destaca ainda a importância de buscar conhecimento em entidades como o Sebrae. “A gestão hoje em dia ela é para o primeiro empreendimento o que água é para nosso corpo. Essencial”, frisa.

Para ele, mais do que um ofício simples, a navalha e a tesoura podem mudar a realidade de muita gente. “É uma profissão que pode sim mudar a vida das favelas, não só pode, como é uma profissão que emerge das favelas. Garotos pretos em sua maioria tentam aprender essa arte pra se sair da criminalidade e podem ter uma vida boa”, finaliza.


Marden, que olha com orgulho os pupilos, diz que ainda vai apresentar o ofício para muita gente, pois a perspectiva é que sejam treinados muitos jovens da periferia que desejam amolar os sonhos, transformando as suas realidades e futuramente, servindo de peças para uma mudança ainda maior num contexto social cercado de dificuldades e violências.


“No futuro eu ainda me vejo como um empreendedor, mas principalmente alguém que estará tentando gerar qualificação e mão de obra”, finaliza, destacando que a mudança em um contexto social, da realidade de uma comunidade, parte da transformação individual, alimentando os sonhos das pessoas em se firmarem no mercado e terem uma vida confortável.

 

 

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